
O termo “metaverso” é adequadamente atribuído a Neal Stepherson em sua obra Snow Crash (STEPHERSON, 1992), no entanto a concepção de um universo paralelo, inclusive acessado por um dispositivo mediador (no caso, um par de óculos análogos aos capacetes de visão 3D, que só viriam a ser propostos nos anos 60 pelo engenheiro Ivan Sutherland), pode ser anteriormente observada em diversos momentos da história datados de tempos bem mais distantes, como, por exemplo, em Pygmalion’s Spectacles escrito por Stanley G. Weinbaum (WEINBAUM, 1935). Nesse caso, a julgar pelo título escolhido pelo autor, podemos retroceder a ideia ao ano 8 da Era Cristã, quando Ovídio, poeta e escultor romano, narrou a história de Pigmalião, rei da Ilha de Chipre que, desgostoso com seu mundo real, esculpe sua estátua Galatéia, trazida à vida através da mediação da deusa Afrodite, criando assim uma espécie de universo paralelo onde Pigmalião e Galatéia vivem uma vida de felicidade e satisfação. Curiosamente a saga é apresentada por Ovídio no livro 10 de seu mais famoso poema, intitulado Metamorfoses (OVÍDIO, 8).
Se formos ainda mais permissivos em nosso raciocínio, a concepção de um universo paralelo pode ser transportada para os tempos das origens da humanidade. Algumas correntes dentro da antropologia e da arqueologia biológica consideram as pinturas rupestres, expressas nas paredes das cavernas habitadas por nossos ancestrais, não apenas um registro documental de cenas do cotidiano real, mas como a expressão de um desejo de uma caçada farta, ou seja, de certo modo, a criação de um universo paralelo onde esses desejos poderiam ser alcançados (para maiores detalhes ver David et al., 1998/2008). Assim, a existência de uma “Second Life” (ROSEDALE, 1999/2003) pode encontrar correlação desde os tempos mais remotos de nossa existência.
Além das obras literárias citadas, também o cinema apresentou e discutiu o tema em diversas produções, tais como Tron (1982), The Matrix (1999), Avatar (2009), Surrogates (2009) e Ready Player One (2018), entre diversas outras, muitas delas inclusive baseadas em textos literários.
O Laboratório de Processamento de Imagem Digital • LAPID
Implantado em 2003 com base em projeto FINEP para digitalização de Obras Raras da Biblioteca Central do Museu Nacional e de edital FAPERJ/Pensa Rio, o Laboratório de Processamento de Imagem Digital (LAPID), logo passou a atuar na incorporação de ferramentas computacionais avançadas nas distintas áreas de pesquisa científica, educacional e cultural desenvolvidas pelo Museu Nacional/UFRJ, tendo como principal objeto de trabalho as coleções científicas do Museu (AZEVEDO, 2007).
Já em 2003 surgiram os primeiros resultados formais (AZEVEDO & CARVALHO, 2008), frutos da parceria estabelecida com o Instituto Nacional de Tecnologia (INT/MCTI) e com o Núcleo de Experimentação Tridimensional (NEXT/PUC-Rio), inicialmente direcionados à pesquisa científica através do estudo digital dos dinossauros e outros vertebrados fósseis brasileiros, resultados esses também refletidos nas atividades educacionais com o desenvolvimento de dissertações de mestrado e teses de doutorado vinculadas aos programas de pós-graduação do Museu Nacional, entre outros.
Ao longo dos últimos anos, o LAPID ampliou suas atividades de modo a englobar outras áreas de atuação. Inicialmente foi a Arqueologia com seus acervos nacionais (registro dos povos ancestrais brasileiros, inclusive com a digitalização do crânio de Luzia, “a primeira brasileira”, proveniente de Lagoa Santa, MG) e internacionais (Coleção Egípcia – especialmente as múmias da coleção do Museu) e a Fetologia, decorrente de estudos no campo da medicina realizados especialmente por nossos parceiros da PUC-Rio e INT. Como desdobramento dessa fase, ocorre a publicação de um primeiro livro, com a participação de diversos pesquisadores ligados ao LAPID e envolvendo nossos primeiros campos de atuação (WERNER Jr. & LOPES, 2009).
Com o passar dos anos, diversas outras áreas e departamentos do Museu Nacional e de instituições colaboradoras foram sendo englobadas (destaque para o meteorito Bendegó e para a coleção arqueológica de vasos marajoara), o que culminou na publicação do segundo livro (LOPES et al., 2013) obra que, dessa vez, envolvia mais de 50 pesquisadores de diversas instituições parceiras. Em 2019, publicamos o terceiro livro (LOPES et al., 2019), agora reunindo 110 autores de 9 países interligados na pesquisa e utilização de metodologias tridimensionais em diversas áreas do conhecimento.
Em decorrência dessas atividades, mais de 500 peças icônicas do acervo do Museu Nacional (dinossauros e outros vertebrados fósseis, múmias, meteoritos, estelas egípcias, urnas e vasos, o crânio de Luzia, entre outras) foram digitalizadas através do uso de scanners tridimensionais de superfície, tomografia tridimensional helicoidal e fotogrametria, tecnologias adaptadas pelo LAPID e seus parceiros à pesquisa científica. Algumas dessas peças foram ainda prototipadas (em impressoras tridimensionais) também fruto da incorporação pioneira dessa tecnologia à pesquisa científica.
O LAPID encontrava-se em franca atividade inclusive com a ampliação de seu quadro funcional e a presença de alunos e estagiários, quando ocorreu o triste evento de 02 de setembro de 2018; um grande incêndio atingiu o edifício sede do Museu Nacional na Quinta da Boa Vista. Nos momentos de dor que sucederam, os arquivos digitais produzidos pelo LAPID (preservados em backups dispersos) trouxeram uma esperança de recuperação parcial do acervo através de impressão tridimensional de cópias digitais (GRILLO; LOBO & AZEVEDO, 2020). Posteriormente, com o início do processo de resgate do acervo atingido e com a recuperação total ou parcial de importantes itens como o crânio de Luzia, meteoritos raros e os exemplares-tipo de dinossauros, os arquivos digitais passaram a ter grande importância adicional na medida que serviram de guia na recuperação dos danos e perdas sofridas pelo material original.
O recorte final do trabalho aqui detalhado foi fortemente influenciado pela realidade imposta pela pandemia de COVID-19 (2020-2022), que forçou o aprimoramento de formas de disponibilização de conteúdos através de plataformas digitais (especialmente metaverso).
Outro fator de extrema importância no desenvolvimento de nossas atividades foi a vinculação do LAPID ao Projeto Space-XR: Pesquisa em Metaversos Compartilhados, projeto que envolvia, além dos laboratórios anteriormente citados, o Visgraf e o Centro PI, ambos do Instituto de Matemática Pura e Aplicada-IMPA/MCTI. Nesse projeto o LAPID ficou responsável pela coordenação da linha denominada Patrimônio Científico-Cultural e alguns de nossos resultados recentes estão apresentados nos capítulos que seguem. •
Referências
AVATAR, 2009. Direção James Cameron. Twentieth Century Fox, USA. 162 minutos.
AZEVEDO, S. A. K., 2007 (Organizador). O museu nacional, 2007. Banco Safra, São Paulo, 359p.
AZEVEDO, S. A. K. & CARVALHO, L. B., 2008. O uso da tomografia computadorizada no estudo de vertebrados fósseis no Museu Nacional/UFRJ – Use of computed tomography in the study of fossilized vertebrates in the National Museum/UFRJ. 1-32. In: Heron Werner Jr. & Jorge Lopes, eds., Tecnologias 3D: paleontologia, arqueologia, fetotologia/Technologies 3D: paleontology, archaeology, fetology. Ed. Revinter, Rio de Janeiro, 190p.
DAVID, J.; LEWIS-WILLIAMS, D. J.; & CLOTTES, J., 2008. The Mind in the Cave – the Cave in the Mind: Altered Consciousness in the Upper Paleolithic In: Anthropology of Consciousness, 1998; 9(1):13-21.
GRILLO, O.N.; LOBO, L.S.; AZEVEDO, S., 2020. LAPID: Using 3D to Recover Heritage Lost in a Fire. Sketchfab Blog. Cultural Heritage – Science Spotlight, 20 January 2020. https://sketchfab.com/blogs/community/lapid-using-3d-to-recover-heritage-lost-in-a-fire/ (18/11/2024).
LOPES, J.; AZEVEDO, S. A.; WERNER Jr., H. &, BRANCAGLION Jr., A. 2019. Seen/Unseen. RioBooks, Rio de Janeiro, 244p.
LOPES, J. R. L.; BRANCAGLION Jr., A.; AZEVEDO, S. A. K. & WERNER Jr., H., 2013. Tecnologias 3D: desvendando o passado, modelando o futuro. Editora Lexikon, 248p.
OVÍDIO (P. Ouidii Nafonis), 8. Metamorfoses. Madras Editora, São Paulo, 2003.
READY PLAYER ONE, 2018. Direção Steven Spielberg. Warner Bros., USA/Índia. 140 minutos.
ROSEDALE, P., 1999/2003. https://secondlife.com/
STEPHERSON, N., 1992. Snow Crash. Bantam Books, New York, 480p.
SURROGATES, 2009, Direção Jonathan Mostow. Touchstone Pictures, USA. 89 minutos.
THE MATRIX, 1999. Direção Lana Wachowski & Lilly Wachowski. Village Roadshow-Warner Bros., USA/Austrália. 136 minutos.
TRON, 1982, Direção Steven Lisberger. Kushner-Lisberger Studios, USA. 96 minutos.
WEINBAUM, S. G, 1935. Pygmalion’s Spectacles. e-book Project Gutemberg, 2007. https://www.gutenberg.org/files/22893/22893-h/22893-h.htm (18/11/2024).
WERNER Jr., H. & LOPES, J., 2009. Tecnologias 3D: Paleontologia, Arqueologia e Fetologia. Editora Revinter, 202 p.