Enfrentando as cinzas e a reclusão: o uso de tecnologias 3D pelo LAPID durante a Pandemia de Covid-19 

O uso de tecnologias tridimensionais pelo Laboratório de Processamento de Imagem Digital (LAPID) não é um desdobramento dos acontecimentos dos últimos anos, isto é, do incêndio do Museu Nacional em 2018 e da Pandemia de Covid-19 em 2020. Desde o começo do século XXI, o LAPID utiliza tecnologias e ferramentas tridimensionais para realizar atividades de pesquisa, ensino e extensão, nas áreas de Paleontologia, Zoologia, Geologia, Arqueologia e outras áreas do conhecimento. Tais atividades são registradas em dissertações, teses, artigos e capítulos de livro publicados nos últimos 20 anos pelos membros do laboratório (alguns desses especialmente em WERNER Jr. & LOPES, 2009 e LOPES et al. 2013). Sendo assim, há uma tradição na utilização dessas tecnologias e metodologias nas pesquisas realizadas pelos membros do LAPID (Figura 1). 

Figura 1: Diagrama mostrando as múltiplas áreas de atuação do LAPID.

O ano de 2018 foi marcado pelo incêndio do prédio principal do Museu Nacional, antigo Palácio da família imperial, onde se localizava não só o LAPID, mas inúmeros outros laboratórios e coleções, além da exposição, as quais foram completamente atingidas pelo incêndio (RODRIGUES-CARVALHO et al. 2022). O incêndio destruiu todos os equipamentos do LAPID e os materiais que se encontravam em análise no laboratório, parte foi totalmente perdida e outra parte foi avariada. A partir disso, além da perda dos equipamentos de tecnologia tridimensional, as coleções outrora acessadas pelos membros do LAPID para estudo ainda se encontram inacessíveis. Esta situação levou o laboratório a atuar em duas frentes (1) a utilização de tecnologias 3D mais acessíveis, e.g. fotogrametria, no registro do resgate dos espécimes que estavam soterrados pelo incêndio e (2) a utilização dos espécimes já digitalizados para a continuidade das pesquisas, especialmente as relacionadas às teses em andamento, e para as ações de ensino e extensão, prototipando-os através do usos de inúmeros materiais (alguns dos trabalhos desenvolvidos podem ser vistos em LOPES et al. 2019). Logo, até a Pandemia de Covid-19, que chegou ao Brasil no início de 2020, os membros do LAPID se dedicavam a participar do resgate das coleções afetadas pelo incêndio, especialmente a de Paleontologia, mas não somente, recriar a base de dados de espécimes digitalizados e continuar avançando na utilização de tecnologias 3D nas pesquisas conduzidas pelos membros do laboratório (para uma compreensão geral ver GRILLO et al. 2020). 

Assim, no início do ano de 2020, o LAPID ainda não tinha um espaço físico próprio, os membros estavam alocados em inúmeros laboratórios parceiros que não foram afetados, como por exemplo o Laboratório de Modelos Tridimensionais (LAMOT) do Instituto Nacional de Tecnologia e o Laboratório de Mastozoologia do Museu Nacional. O aparecimento e a disseminação do SARS‑CoV‑2 implicaram em uma mudança drástica na realidade mundial. Como uma forma de conter sua disseminação, medidas de restrições no funcionamento da sociedade como um todo foram tomadas, fechando-se fronteiras, afetando drasticamente o deslocamento das pessoas (PEERI et al., 2020). Tais medidas não foram diferentes para os pesquisadores, assim, o LAPID, como todos os outros laboratórios, implementaram rodízios, quando necessários, e o desenvolvimento de pesquisas de forma remota (Figura 2). 

Figura 2: Reunião online da equipe do LAPID

A partir dos acontecimentos mencionados acima, perda de espécimes, ou seja, perda do patrimônio cultural e de suas informações geométricas, e a restrição de mobilidade praticamente total, o que impossibilitava o acesso aos espécimes que não foram destruídos pelo incêndio ou que estavam em outras instituições, fatos que impactam diretamente no cotidiano do desenvolvimento científico de qualquer laboratório de ciências naturais e áreas correlatas, parte dos integrantes do LAPID se debruçaram sobre a questão de como as técnicas e metodologias digitais poderiam auxiliar no acesso digital a esses materiais, e por consequência, a continuação das pesquisas científicas. Foram descritas as técnicas tridimensionais mais adequadas para os materiais e a realidade tecnológica das instituições brasileiras, as estratégias de prioridade dos espécimes a serem priorizados, especialmente em relação a espécimes de coleções zoológicas e, por fim, as possibilidades de financiamento (LOBO et al. 2021). Vale salientar, que tais restrições de deslocamento implementadas em decorrência da Covid-19, podem um dia voltar a ser implementadas, já que existe a possibilidade de ocorrência de futuras pandemias (CYRANOSKI, 2020).

Considerando esse tipo de cenário e a importância do acesso às informações científicas contidas nos acervos de diversas instituições de pesquisa no mundo todo, torna-se cada vez mais importante encontrar novos meios de disponibilização de dados morfológicos tridimensional, já que já há todo um debate sobre a disponibilidade de dados associados, isto é, metadados (OECD, 1999). O acesso remoto através de bancos de dados digitais é uma opção que traz algumas vantagens relevantes, como, por exemplo, minimizar a necessidade de deslocamento de pesquisadores para visitar acervos de difícil acesso, maior disseminação de informações científicas, maior facilidade para comparação de dados entre diferentes espécimes, etc. Além disso, se um pesquisador consegue acessar a informação que precisa através de um arquivo digital, minimiza-se a necessidade de manuseio de espécimes que muitas vezes são frágeis e raros. 

Diversas instituições têm se empenhado em digitalizar seus acervos científicos e torná-los acessíveis através de bancos de dados online. Plataformas como Morphobank, DigitalMorphology, MorphoSource e MorphoMuseum têm sido usadas, assim como plataformas próprias de algumas instituições, a exemplo do X3D do Smithsonian Institution. Essas plataformas têm como público alvo pesquisadores que necessitam solicitar acesso aos dados tal qual fariam ao visitar pessoalmente uma coleção científica. Outra plataforma comumente usada, mas a fim de disponibilização para o público geral é o Sketchfab, onde modelos 3D podem ser disponibilizados para visualização apenas ou para download, a critério dos curadores. Nesse sentido, durante a pandemia de SARS‑CoV‑2 inicialmente o LAPID se voltou à faceta de curadoria virtual, a organizar seus dados tridimensionais, discutir políticas de disponibilidade, criar suas próprias contas em plataformas, e.g. https://sketchfab.com/lapid.mn (Figura 3) e disponibilizar dados morfológicos em publicações (LOBO et al. 2021) (Figura 4). 

Figura 3: Página de depósito de modelos tridimensionais do LAPID no Sketchfab.
Figura 4: Modelo tridimensional publicado como dataset do crânio e mandíbula de Puma concolor espécime MN 57641 em múltiplas vistas. Puma concolor specimen MN 57641 in multiple views.

Infelizmente o processo de digitação 3D de acervos é muito demorado e exige uma equipe especializada e dedicada a esse trabalho. O processo de digitalização de uma peça pode levar de poucas horas até dias dependendo da complexidade do material e da necessidade de pós-processamento. A título de informação, digitalizar um acervo com 10 mil exemplares demandaria 40 anos de trabalho contínuo caso fosse possível digitalizar e disponibilizar um exemplar por dia. Os acervos de algumas instituições têm mais de 200 mil exemplares. 

Portanto, junto com os benefícios, a disponibilização digital de acervos, traz novos desafios para as instituições de pesquisa. Com ela surge a necessidade de discutir políticas de acesso aos arquivos digitais, de definir normas e documentos para o manejo e tratamento dos dados, definir como os visitantes podem utilizar os dados, etc. O próprio processo de digitalização em si traz uma série de desafios: necessidade de dispositivos de armazenamento confiáveis, seguros e de alta capacidade, cópias de segurança em servidores online, conexões de internet rápidas para lidar com grande quantidade de dados, contratação de novos técnicos dedicados ao trabalho de digitalização e processamento dos arquivos, etc. Existe portanto uma demanda constante por mais recursos financeiros, visto que essas metodologias têm um custo de implementação elevado. Mesmo havendo investimento, como por exemplo editais de apoio das agências de financiamento, o Brasil como um todo se mantém em um patamar muito aquém do necessário, especialmente, quando se compara com sua série histórica, ainda se mantendo em patamares abaixo dos de 2014 (SOU CIÊNCIA, 2024). E ainda investindo pouco mais do que 1% do seu Produto Interno Bruto, o que é pouco quando comparado com os países que lideram a corrida em desenvolvimento de tecnologia, por exemplo Alemanha (3,1%), China (2,4%), Estados Unidos da América (3,5%), Japão (3,3%), etc (OUR WORLD IN DATA, 2025). 

Apesar desses desafios, a digitalização dos acervos cria inúmeras possibilidades de pesquisa e extensão. Com o decorrer da Pandemia, além de manter as atividades de curadoria e discussão patrimonial através do uso das tecnologias tridimensionais nas atividades possíveis de serem realizadas com as medidas de distanciamento implementadas, os membros do LAPID se debruçaram em tecnologias e plataformas de realidade virtual. Um dos usos interessantes é a criação de exposições virtuais digitais que podem ser visitadas por qualquer pessoa a partir de qualquer parte do mundo. Através da utilização de plataformas de realidade virtual, como o Spatial.io, e o conjunto de modelos tridimensionais virtualizados ao longo das duas décadas de trabalho e a partir de novas possibilidades de modelagem proporcionadas por novos softwares, os membros do LAPID desenvolveram exposições virtuais no intuito de possibilitar um grau maior de imersão e de interatividade entre os diversos visitantes e o acervo, que ou estava inacessível ou fora perdido durante o incêndio. Assim, a equipe vem produzindo algumas iniciativas nessa temática através da colaboração com colegas do grupo Space-XR (grupo que reúne pesquisadores do LAPID/Museu Nacional/UFRJ, VISGRAF/IMPA, BIODESIGN/PUC-Rio e LAMOT/INT). Mais informações sobre esse projeto estão sendo apresentadas em outros capítulos da presente obra. 

Conclusão

Os acontecimentos dos últimos anos demandaram não só a continuação do desenvolvimento de pesquisa, ensino e extensão pela equipe do Laboratório de Processamento de Imagem Digital, mas também profundas reflexões sobre o papel do LAPID dentro do Museu Nacional e como uma instituição que contribui para o progresso da ciência. Assim, o incêndio que ocorreu no Museu Nacional e o distanciamento introduzido pela Pandemia da SARS‑CoV‑2 nos fizeram caminhar por algumas temáticas: 

  • Como as tecnologias tridimensionais podem incrementar os processos de curadoria do Patrimônio Cultural salvaguardados pelas instituições científicas. 
  • Reflexões sobre quais exemplares devem ser priorizados nesse processo estendido de curadoria, tendo em vista as limitações impostas pela quantidade de pessoal especializado e equipamentos disponíveis. 
  • A necessidade de criação de banco de dados que abriguem e possibilitem o acesso aos modelos tridimensionais provenientes da produção científica como um processo necessário da curadoria e de divulgação das coleções científicas presentes na instituição.
  • Desenvolvimento de novas possibilidades extensionistas a partir de tecnologias de imersão virtual, como a criação de salas temáticas para divulgar informação científica, especialmente na realidade do processo de restauração da exposição do Museu Nacional. 

Por fim, a partir de todo o enfrentado, é perceptível a necessidade de aumento no investimento em ciência e tecnologia e das instituições que fazem pesquisa, no intuito de aumentar a capacidade de responder de forma adequada aos desafios enfrentados durante o desenvolvimento científico e educacional do nosso país, criando possibilidades de centros de pesquisa mais equipados e com mais pessoas para pesquisar e salvaguardar nosso Patrimônio Cultural.


Referências

CYRANOSKI, D. 2020. Profile of a killer: the complex biology powering the coronavirus pandemic. https://www.nature.com/articles/d41586-020-01315-7.

GRILLO, O.; LOBO, L. & AZEVEDO, S. A. 2020. LAPID: Using 3D to Recover Heritage Lost in a Fire. https://sketchfab.com/blogs/community/lapid-using-3d-to-recover-heritage-lost-in-a-fire.

LOBO, L. S.; GRILLO, O. N. & AZEVEDO, S.A.K., 2021. Morfologia, Pandemia e 3D. Arquivos de Zoologia, 52(2): 33-40. http://doi.org/10.11606/2176-7793/2021.52.02.

LOBO, L. S.; SALLES, L. D. O. & MORAES NETO, C. R., 2021. 3D model related to the publication: A Puma concolor (Carnivora: Felidae) in the Middle-Late Holocene landscapes of the Brazilian Northeast (Bahia): submerged cave deposits and stable isotopes. MorphoMuseuM 7:156. doi: 10.18563/journal.m3.156

LOPES, J.; Brancaglion Jr., A.; Azevedo, S. A. &  WERNER Jr., 2013. Tecnologia 3D: desvendando o passado, modelando o futuro. Editora Lexikon, 248 p.

LOPES, J.; AZEVEDO, S. A.; WERNER Jr., H. &, BRANCAGLION Jr., A. 2019. Seen/Unseen. RioBooks, Rio de Janeiro, 244 p.

PEERI, N.C.; SHRESTHA, N.; RAHMAN, M.S.; ZAKI, R.; TAN, Z.; BIBI, S.; BAGHDANZADEH, M.; AGHAMOHAMMADI, N.; ZHANG, W. & HAQUE, U. 2020. The SARS, MERS and novel coronavirus (COVID‑19) epidemics, the newest and biggest global health threats: what lessons have we learned? International Journal of Epidemiology, 49(3): 717‑726.

ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT (OECD). 1999. Final Report OECD Megascience Forum Working Group on Biological Informatics. OECD, Paris. Disponível: http://www.oecd.org/science/inno/2105199. pdf.

OUR WORLD IN DATA, 2025. Research & development spending as a share of GDP [dataset]. UNESCO Institute for Statistics, “World Development Indicators”. Acessado em 20/01/2025, https://ourworldindata.org/grapher/research-spending-gdp. (acesso em 20/01/2025).

RODRIGUES-CARVALHO, C.; CARVALHO, L.; AMARAL, A. L.; REIS, S.; BITTAR, V., 2022. Depois das cinzas: Conservação preventiva das coleções recuperadas pelo Núcleo de Resgate de Acervos do Museu Nacional. Rio de Janeiro: Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 104 p.

SOU CIÊNCIA, 2024. Orçamento das Universidades Federais. Acessado em 10/01/2025, disponível em https://souciencia.unifesp.br/dados-fctesp/orcamento-universidades-federais.

WERNER Jr., H. & LOPES, J., 2009. Tecnologias 3D: Paleontologia, Arqueologia e Fetologia. Editora Revinter, 202 p.

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