
A epigrafia digital da cena da Procissão Funerária de Neferhotep foi desenvolvida durante as campanhas de 2020 e 2023 para o Proyecto de Conservación e Investigación de la tumba de Neferhotep (TT49), sítio localizado na Necrópoles tebana dos Nobres, na colina de El-Khokha (Luxor, Egito).
A epigrafia digital é uma maneira de produzir um registro sistemático das imagens e dos textos inscritos nas paredes da tumba, e o objetivo foi produzir um desenho vetorizado atualizado correspondente à imagem original, de acordo com as atuais condições de preservação da cena.
A tumba é datada do curto reinado de Ay (1327-1323 a. C.) e seu estilo arquitetônico é característico do final da XVIII Dinastia. Ela é composta internamente de uma capela e de um vestíbulo, e das suas respectivas passagens de acesso. Neferhotep foi um funcionário do templo de Karnak e cenas relacionadas à sua vida, assim como os rituais funerários decoram a sua tumba. Toda a cena que estamos tratando aqui, com a travessia do Nilo, o desembarque e a chegada em terra até a tumba está localizada na parede leste do vestíbulo, se estendendo do norte ao sul do registro superior desta parede.
Tal como todo o programa decorativo da tumba, se trata de uma cena rica em detalhes e com uma iconografia com intencionalidade significativa. Em destaque, observamos as embarcações atravessando o rio Nilo, são seis ao todo, apresentadas em diferentes dimensões, e cada uma porta diferentes personagens, objetos e representando distintos elementos iconográficos. Elas sugerem a percepção do movimento e representam a travessia do falecido para a margem oeste, local da necrópole, associada ao mundo dos mortos.
Na extremidade esquerda da cena, a primeira embarcação carrega o catafalco de Neferhotep, sendo ele enlutado por algumas mulheres, e dentre elas a sua esposa, Merytra. Esta embarcação é identificada enquanto a barca mítica neshmet, cuja tripulação assimila papéis funcionais divinos. A segunda embarcação, tripulada por nove remadores, arrasta a primeira, e a sua cabine é repleta de carpideiras, tema semelhante da próxima embarcação, que carrega um grupo de homens enlutados. As outras duas embarcações levam o mobiliário funerário, os alimentos necessários às cerimônias funerárias, e membros da comunidade que se direcionam para a tumba, os sacerdotes, familiares e conhecidos do falecido. No registro final da cena vemos o cortejo do falecido e o próprio Neferhotep mumificado, em terra, na margem oeste; todos se portam diante de sua tumba para lhe prestar as últimas homenagens e para a celebração dos ritos funerários.
A metodologia da produção consistiu em diferentes etapas, primeiramente uma primeira versão da epigrafia digital foi desenvolvida utilizando como referência principal a fotogrametria da cena produzida por Víctor Capuchio e pela epigrafia produzida por Davies na década de 30 (Figura 1). Os desenhos foram realizados com o tablet Wacon – Intuos Pro (model: PTH660), e através do programa Adobe Photoshop CC (versão 2015.0.0). No programa, optou-se pelo uso de distintas camadas sobrepostas à fotogrametria para a produção da epigrafia digital. Ela foi produzida a partir da visualização da discriminação dos pixels em função da gama cromática apresentada pela fotogrametria. Verificando, desse modo, os pigmentos referentes às linhas dos desenhos e dos hieróglifos da cena da procissão funerária.

A epigrafia foi produzida principalmente com o traçado livre, pelo uso da ferramenta pincel, e nas áreas retas, a partir da ferramenta caneta. Esses traçados e linhas tiveram como orientação a sobreposição das linhas identificadas na imagem. O uso de camadas com alteração na matiz e saturação das cores da fotogrametria também auxiliaram na visualização e identificação dos elementos da cena.
O trabalho de campo consistiu no controle do desenho epigráfico digital in situ, através da aplicação de distintas metodologias. Foi necessário fazer a correção das distorções verificadas no desenho produzido a partir da fotogrametria, assim como a correção e adição de detalhes observados in situ (Figura 2). O primeiro passo consistiu na medição da cena e de elementos distintos da cena através da escala manual, trena, nível digital L3D-12 Arita, e a trena digital modelo GLM 120 C Bosch. Essas ferramentas foram utilizadas sem o contato direto com a parede, evitando, desse modo, qualquer dano às pinturas murais altamente frágeis (Figura 3).


A partir das medições in situ foi possível compreender as proporções das medidas lineares do desenho e estabelecer uma escala aplicável ao trabalho epigráfico. Essa escala possibilitou fazer as correções necessárias do desenho através do programa Adobe Photoshop, elas foram feitas com a caneta e o tablet Wacom, a partir do traçado livre. O controle da iconografia e dos hieróglifos foi feito em partes, a partir da observação direta da seção escolhida da cena, como, por exemplo, a imagem da embarcação do coro dos homens (Figura 4).

Diversas áreas da cena, e muitas das inscrições apresentam desgastes, o que dificulta a interpretação dos elementos e dos hieróglifos, muitas vezes impossibilitando a sua representação na epigrafia. Devido ao desgaste de muitos sinais, a distinção entre os pigmentos e sinais de desgastes exige um trabalho minucioso na verificação e reprodução mais fidedigna das inscrições. A partir da observação in situ, e da observação das fotos tiradas com a exposição da luz UV (Figura 5), foi possível comparar e verificar alguns hieróglifos que levantaram dúvidas acerca de sua identificação (Figura 6).


As atividades pós-campo consistiram na alteração das distorções de acordo com as proporções verificadas in situ. Através das medições, foi possível perceber alguns padrões de alturas e larguras das imagens, e desse modo verificar as escalas relativas do desenho. As alterações das distorções foram feitas a partir da photoshop transformation tool, e do enquadramento da epigrafia de acordo com as medidas relativas entre altura e largura (Figura 7).

A partir destas distintas metodologias, como resultado, foi possível produzir a epigrafia digital da cena da procissão funerária, através da tradução da imagem da parede para uma imagem vetorizada. As correções das distorções procuraram respeitar a perspectiva da cena captada pela observação direta. As correções dos elementos diversos da cena, e dos desenhos e formas dos hieróglifos também procuraram seguir os padrões das imagens observados em campo, através dos diferentes recursos empregados, resultando em um trabalho epigráfico produzido com diferentes recursos de controle e percepção da imagem (Figuras 8, 9 e 10).



Referências
DAVIES, N. de G., 1973. The Tomb of Neferhotep at Thebes. 2 vols. (Metropolitan Museum of Art Egyptian Expedition, New York: Arno Press.
PEREYRA, M. V.; ALZOGARAY, N.; ZINGARELLI, A.; FANTECHI, S.; VERA, S. VERBEEK, C.; GRAUE, B.; BRINKMANN, S., 2006. Imágenes a preservar en la tumba de Neferhotep. Tucumán: Facultad de Artes, Universidad Nacional de Tucumán.
PEREYRA, M. V.; BONANNO, M.; CATANIA, M. S.; IAMARINO, M. L.; OJEDA, V. C.; CORDEIRO, E. S. N.; LOVECKY, G. A., 2019. Neferhotep y su espacio funerario I. Ritual y programa decorativo. Buenos Aires: IMHICIHU – CONICET.
WILKINSON, R. H., 1992. Reading Egyptian Art. A hieroglyphic guide to ancient Egyptian painting and sculpture. New York: Thames and Hudson.